sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Monodiálogo #2

- Então, como é que vai isso?

- ...

- Porque é que estás com essa cara de espanto? Nunca tinhas conversado contigo próprio?

- Sim, muitas vezes... Mas isto é ridículo!

- Não sei porque há-de ser ridículo. É a mesma coisa.

- Não é bem a mesma coisa. Nos outros diálogos que tenho comigo, sou eu quem decide o que é dito. E não me parece que esteja a decidir o que tu dizes.

- Isso é porque eu não sou o teu consciente. Mas sou na mesma tu.

- És o meu subconsciente?

- Algo do género. Se quisermos ser mesmo específicos, sou aquilo que existe na tua mente entre o inconsciente e o subconsciente, mas um bocado mais para o lado do subconsciente. Ali mais para o lado do inconsciente mora o meu irmão, mas ele não gosta muito de aparecer.

- OK... Então e... O que te traz aqui?

- Venho alertar-te para a batalha que se avizinha.

- Batalha?

- Sim, uma batalha de cujo desfecho depende a tua liberdade de pensamento.

- Explica lá isso melhor...

- Até há pouco tempo viviamos cá todos em perfeita harmonia. Toda a gente fazia a sua parte e se dava bem. Mas o equilíbrio começou a desaparecer quando alguns de nós decidiram tentar assumir um controlo total. Acredita que não queres que consigam, não ias gostar daquilo em que te tornariam.

- Mas... Nós, quem?

- Nós, tu. Ou pensas que uma pessoa é algo uno, indivisível? Nada disso, tu és o produto resultante da conjugação das inúmeras entidades que constituem a tua mente.

- Isto parece-me mais um produto resultante de todas as drogas que consumi na década passada.

- Pensa o que quiseres. O importante é que fiques do nosso lado, que o teu consciente fique sempre do lado do pensamento livre e nunca te passes para o outro lado. Podemos contar contigo, soldado?

- Yessir!!! Defenderei o pensamento livre com toda a minha sanidade mental!

Requiem pela paixão

- É fodido, o destino. Chega a ser cruel, o filho da puta. Se um gajo é amorfo e só curte estar em casa a ver o futebol e a beber cerveja, tem uma gaja que se farta de queixar que ela não lhe liga nenhuma e que não a leva a fazer nada. Mas um gajo que curta viver mais intensamente tem sempre que se apaixonar por uma gaja apática e anti-social que não alinha em nada. Foda-se...

- Estás num daqueles dias, não é?

- É como se o amor fosse uma obra-prima de um grande artista, sublime. Só que em determinado momento alguém rouba a merda do quadro e deixa lá uma imitação. Para os observadores casuais é como se tudo estivesse igual, para quem passa e olha parece genuíno, mas um conhecedor percebe facilmente a diferença pelos pormenores. Distingue, às vezes nos detalhes mais insignificantes, que não é o traço do mestre, que só pode tratar-se de uma imitação. Neste ponto o conhecedor tem um leque de opções, em que a negação é uma das mais populares, para quê ir à procura do original se a imitação está tão bem feitinha?

- Diz-me lá uma merda. Ela não te fode a cabeça, pois não? Quando vamos beber copos e chegas tarde, ela não te fode a cabeça. Apesar de não querer sair, não te fode a cabeça se tu saíres, mesmo que só chegues no dia seguinte. Não é?

- É.

- Então? Porque é que estás tão fodido?

- Porque é mais que óbvio que isso não me chega, meu. Eu quero sentir aquela cena que nos faz vibrar, que nos faz andar estupidamente bem dispostos, num estado constante de euforia, como num rush de adrenalina permanente, que nos faz sentir que podemos podemos fazer qualquer coisa, que somos donos do mundo, que conseguiríamos desviar a órbita da Terra se isso fizesse a outra pessoa feliz!

- Meu... ... Cai na real...

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Explorar o Inconsciente

A palavra do centro: este exercício utiliza pistas a partir de palavras contidas na mente consciente como forma de alcançar o material guardado no inconsciente. Escreva oito palavras no topo de uma folha de papel - podem ser quaisquer palavras, mas não devem formar uma frase. Em seguida, escreva outras oito palavras no fundo da página. Regresse ao topo e pense numa palavra que ligue de algum modo as duas primeiras palavras escritas no papel. Se essas palavras forem "árvore" e "lama", por exemplo, poderá escolher "raiz" como palavra de ligação. Passe para as duas palavras seguintes e continue a estabelecer ligações, trabalhando fila a fila, alternadamente, a partir do topo e do fundo da página. A certa altura, acabará por descobrir uma palavra situada ao centro (ver diagrama). Que significado tem para si essa palavra central ? Passe algum tempo a considerar essa palavra - será importante!


Fonte: http://www.di.ubi.pt/~paraujo/Curiosidades/ConscienteInconsciente.htm

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Vi-me

Hoje vi-me. Vi-me com o dobro da idade. Senti orgulho, mas também uma pontinha de comiseração. Nem sei bem o que pensar...

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Anões de Circo ou Irreal Surreal

- Não, não, não! Errado!! Isso não faz qualquer sentido!
- Mas… Isto é ficção, tudo é possível…
- Claro que tudo é possível, desde que faça sentido.
- Então, mas não disseste nada sobre a parte em que o personagem desenha uma cara num saco de papel e depois tem um diálogo com ele. O saco responde-lhe e tu não reclamaste.
- Claro que não reclamei, isso faz sentido.
- Um saco de papel a falar faz sentido?
- Sim.
- Então porque é que a gravidade da Terra começar a aumentar e o pessoal começar a ficar todo atarracado não faz?
- Um diálogo com um objecto inanimado pode ser visto como uma introspecção, e mesmo que seja literal, embora não seja provável, quem sabe não é possível, em determinada circunstância, um saco de papel responder-te?
- Então e não será possível, embora muito pouco provável, que a gravidade da Terra aumente desenfreadamente?
- Não.
- Porquê?
- Bom, além da questão física de que para aumentar a gravidade teria que aumentar a massa e que essa matéria extra teria que vir de algum lado, que faz com que não faça qualquer sentido e que seja impossível, é estúpido.
- Estúpido? Isso é um termo técnico? Belo mentor que me saíste…
- Eu estou a fazer o que é suposto, estou a ensinar-te. E sim, é um termo técnico. Agora se não consegues perceber uma questão desta simplicidade, acho que vai ser um longo e tortuoso caminho.
- Pronto! Está bem, a gravidade da Terra não aumenta, ninguém fica pequeno, é o anão que começa a crescer de uma forma inexplicável. Que tal?
- Olha, estás a ver? Isso já faz sentido. E não é, de todo, absurdo.
- Uff…

O anão começou a aperceber-se que algo estava a acontecer quando, ao deitar-se, reparou que os seus pés tocavam no fundo da cama. No dia seguinte confirmou o que já calculava, tinha crescido mais de dez centímetros. Enquanto, radiante, se olhava ao espelho, não conseguiu evitar um pulo de alegria…

- Ahem, ahem…
- O que foi agora?!
- Eu não sei se isto vai resultar… Por acaso ocorreu-te que se um anão adulto reparasse que estava a crescer, o mais provável seria ficar preocupado? Ainda por cima o teu anão trabalha num circo, o seu emprego depende de ser anão. Fará sentido que ele fique radiante por estar a crescer? Além do mais, toda a gente sabe que os anões têm uma enorme dificuldade em saltar.
- Argh! Isto é ficção, é suposto ser surreal. O meu anão pode muito bem ficar contente e até mesmo saltar como uma gazela!
- Surreal não é o mesmo que irreal. E ainda há o facto de ser estúpido.
- Acho que tens razão no facto de isto se calhar não vir a resultar…

Enquanto, preocupado, se olhava ao espelho, ponderou sobre como a sua vida se alteraria se crescesse até uma altura normal. Ficou apreensivo por achar que as alterações não seriam positivas.
No circo, o contorcionista sem pernas…

- Porque é que estás a assobiar assim?
- Por acaso imaginaste o que estás a escrever?
- Mais ou menos.
- Pois, mais ou menos não chega. O que tu queres não é que quem ler consiga visualizar a cena?
- Sim… acho que sim…
- Então como é que achas que isso vai resultar se nem tu a imaginaste?
- Cada um que imagine à sua maneira.
- Está bem, isso não é necessariamente errado, mas imagina lá um contorcionista sem pernas.
- Estou a imaginar. O que é que tem?
- Não te parece um bocado estúpido? Um gajo sem pernas a fazer contorcionismo. O que é que ele tem para contorcer?
- Pode ser um bocadinho de humor inglês.
- Não te metas nisso, pá. Ainda nem rastejar sabes e já queres correr? Escreve lá a tua historieta e deixa-te de tentar ter piada.
- Sim, mestre.

No circo, o contorcionista sem braços reparou que o anão não estava bem. Então Zé, estás cá com uma cara. O que é que se passa? Perguntou o contorcionista. Nem sei bem o que se passa, só sei que nos últimos dias cresci mais de dez centímetros. Respondeu o anão. O contorcionista abriu muito os olhos. A sério? Não te esqueças que, aconteça o que acontecer, tu vais ser sempre tu, independentemente da altura que tenhas, ok? Não queremos cá crises de identidade. E já sabes, desde que não seja para um abraço ou para uma palmada nas costas, podes contar comigo.

- Muito bem, gostei. Focar a questão da identidade. Faz sentido. E um bocadinho de humor português também não ficou mal, não senhor. Verei uma luz no fundo do túnel?
- Importas-te?
- Desculpa.

Obrigado Rogério, és um bom amigo. Dá cá mais cinco!

- Não abuses!

- ...

Os dois riram com gosto. Era o que o anão realmente precisava, de uma boa gargalhada. Sabes Rogério, esta é uma das coisas que mais gosto em ti, a capacidade de te divertires com os teus problemas. Quando conseguimos fazer isso é como se deixassem de ser problemas. Disse o anão. Quais problemas? Respondeu o contorcionista com um sorriso gozador. Imagina lá, por exemplo, eu dizer ao Flávio qualquer coisa como “Então Flávio, estás fino?”. Riram durante mais alguns minutos. Estou a ver onde queres chegar. Pois, contigo sei que posso estar à vontade, sem ter que estar com atenção ao que digo. Se a minha cara não ficasse à altura dos teus genitais, até te dava um abraço! Mais algumas gargalhadas depois, chegou a hora de pegar ao trabalho e cada um foi para o seu sítio.

- Nada mau, nada mau. As piadas já estão a ficar um bocadinho forçadas, mas não está nada mau. Se calhar é dos uísques que já bebi, mas até está com graça. Então e o que é que vai acontecer agora? Como é que vais transformar a ideia de pôr o anão a crescer num enredo, numa mensagem?
- Não faço a menor ideia. Isto não é nada do que eu tinha pensado inicialmente.
- Ainda bem! Lição número um, a nossa criatividade não está no consciente mas sim no subconsciente. Quando pensamos muito na história e nos esforçamos para que seja complexa e profunda, o mais provável é sair algo frio e artificial. O melhor é começar simplesmente a escrever sem pensar muito nisso e é aí que as coisas saem realmente profundas. Tens que deixar que seja o subconsciente a decidir o rumo das coisas.
- Ok, vamos lá ver…

Quando o anão acordou, assustado, verificou que para caber na cama estava praticamente em posição fetal. Horrorizado, saiu da cama para constatar que durante a noite o fenómeno se tinha agravado. Estava praticamente com o dobro da altura!

- Pronto, já estamos a descambar outra vez para a estupidez…
- Olha, sabes que mais?
- Que mais?

O anão foi crescendo, crescendo. Quando atingiu um metro e setenta arranjou emprego num banco. The end.

- Até amanhã.
- Até amanhã.

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Há sempre alguém

Dos ensaios em casa do Bigodes, naquele prédio inacabado que foi ocupado por famílias pobres como a dele; da minha velha guitarra rosa choque, sempre a desafinar, e que agora está para lá num canto, coitada, como um testemunho silencioso daqueles tempos tão barulhentos; da pinta das poses de palco, em que o guitarrista tinha que tocar com a guitarra o mais abaixo possível e o baixista o mais acima possível; das excursões matinais de Sábado, a pé até à escola de música onde o Celestino nos aturava com infindável paciência; até da péssima ideia de ensaiar na Sociedade Recreativa Cabo-Verdiana, com as janelas pejadas de pequenos africanos, já que os grandes estavam todos lá dentro a assistir e que, muito curiosamente, foi a única vez que um solo de improviso me saiu realmente bem, só que a confusão ao fim, em que até porrada houve, nos fez desistir, mas graças a isso fiquei sempre tido como um virtuoso naquela comunidade; do nosso primeiro e último concerto na garagem do Chouriço, em que o povo cantou tão alto que nem sequer se conseguia perceber quão mal tocávamos e que foi, portanto, um sucesso; da Minhoquinha; da Morte; do Salvador Dali... Ah, saudade...

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Magia 1/4

E agora, senhoras e senhores, para o meu próximo número vou precisar de um preservativo e de um voluntário. Por razões diversas, os olhos de toda a gente na plateia ficararam esbugalhados. Calma, ha ha, estava a brincar em relação ao preservativo, vou precisar só de um voluntário, ou quem sabe até uma voluntária. Porque não, por exemplo... a menina! Aquela menina tão engraçada de óculos, você, de camisola côr-de-rosa e gancho no cabelo. Sim, você, não se acanhe, suba para o palco, e também não precisa de ter medo, estará segura nas minhas mãos, disse o velho ilusionista com o seu melhor sorriso.

Hesitante e pouco à vontade, Maria subiu os três degraus já gastos que facilitavam o acesso ao palco. Uma salva de palmas para a nossa corajosa voluntária, senhoras e senhores, continuou o prestidigitador enquanto encaminhava Maria para dentro do baú recentemente trazido pela sua assistente. Assim que fecha a tampa do baú com Maria lá dentro, num ápice, pega numa enorme espada e trespassa-o. O público estremeceu, não de assombro pelo acto, já que toda a gente da plateia tinha já visto centenas de truques destes, mas apenas pela brusquidão. O prestidigitador continuou frenético e ao fim de menos de meio minuto já o baú estava cravejado com perto de uma dezena de espadas. O público respondeu ao abrir de braços do prestidigitador com um pouco efusivo aplauso, que este retribuíu com uma vénia excessivamente teatral. Com um gesto, o artista pediu silêncio, o público acatou, entra o rufar da tarola enquanto o prestidigitador começa a retirar as espadas e termina com um toque de pratos no momento em que o velho artista abre o baú e um bando de pombas sai a esvoaçar. O público irrompe em aplauso, muito provavelmente mais pela simpatia e pela carismática figura do velho ilusionista do que pela espectacularidade do número.

Peço desculpa, senhoras e senhores, começou o prestidigitador, mas isto não correu bem como era esperado. Estava a contar ver sair do baú a nossa voluntária, mas isso não aconteceu. Peço alguns momentos de silêncio para tentar recuperá-la, senão poderá ficar para sempre perdida no limbo. A maioria das pessoas do público entrou na brincadeira e fingiu preocupação. O ilusionista voltou a fechar o baú, recitou uma ladaínha numa língua que aparentava ser latim, voltou a abri-lo e, ao som daquele pequeno excerto musical, vulgarmente conhecido como tcha-ran, eis que sai Maria do baú, algo envergonhada, entre balões e serpentinas. Foi a apoteose do espectáculo! Os falsamente expectantes espectadores, paternalistas, aplaudiram sonoramente de pé. O velho artista desfez-se em vénias e por fim apresentou a sua assistente - certamente a sua mulher que, embora provavelmente já não lhe ficasse tão bem como antes, ainda era bem capaz de estar a usar o mesmo fato de lantejoulas de quando tinha iniciado a sua carreira, vinte ou trinta anos antes - para que tivesse também o seu momento de protagonismo sob os focos do palco. Em conclusão, o artista agradeceu a presença dos espectadores e convidou-os a voltar. Estes calmamente começaram a abandonar o velho teatro enquanto o ilusionista guiava Maria pela mão até às escadas que a permitiam descer do palco. Muito obrigado pela sua participação, disse, e deixe-me que lhe diga que eu não acredito que seja o acaso que leva ao meu palco os voluntários para os meus números. Acho que as pessoas acabam a participar nos meus truques por uma razão, uma razão superior, continuou, devo também avisá-la que é possível que haja efeitos secundários, mas não se preocupe, não correrá qualquer risco, concluiu o ilusionista com o seu simpático e permanente sorriso. Maria franziu a sobrancelha ao ouvir as palavras do velhote, mas rapidamente se tranquilizou pensando que aquilo ainda faria parte do número, para manter a ilusão e a fantasia. Despediu-se cordialmente do simpático prestidigitador e dirigiu-se para a porta onde Joaquim já a esperava.

Aquilo não enganou ninguém, até uma criança percebe que o baú tem um fundo falso e que aquilo se faz com os alçapões que há no palco, disse Joaquim enquanto caminhavam até ao carro. Era de facto verdade. Era também verdade que os truques já estavam bastante vistos e ultrapassados. O espectáculo não deixava de ser divertido, mas em termos de ilusionismo já não conseguia competir com os novos talentos, que tinham a tecnologia do seu lado e conseguiam deixar o público estupefacto. Sim, respondeu distraidamente Maria, não tem grande truque. Assim que ele fechou a tampa do baú, alguém me tirou de lá por um alçapão e fiquei debaixo do palco até ser altura de voltar para o baú. No entanto... Foi estranho. Estranho como? Não sei bem explicar, mas parecia que, apesar de tudo, havia ali magia. Magia? Repetiu Joaquim colocando o seu sorriso jocoso que ela tanto odiava. Nem sei porque me dou ao trabalho de falar contigo sobre estas sensações estranhas que tenho. Pronto, não fiques chateada, sabes que me custa compreender essas coisas. A mim também. Achas que compreendo? É um feeling... Mas não quero falar mais sobre isso.

Ninguém proferiu mais nenhuma palavra e estavam já a meio caminho de casa quando Maria avista ao longe, à beira da estrada, o que lhe parece ser um grupo de anões. A estupefacção foi total quando, ao aproximar-se, verificou que eram sete, todos tinham barretes vermelhos e transportavam pás e picaretas. Joaquim reparou na sua boca aberta de espanto e perguntou o que se passava. Maria respondeu que nada se passava, sabia perfeitamente que se lhe dissesse que tinha visto sete anões à beira da estrada, a única coisa que conseguiria era ser gozada durante vários dias.

O resto da viagem decorreu em absoluto silêncio. Normalmente incomodava-a a capacidade de Joaquim para suportar o silêncio, mas não desta vez.

Chegados a casa, Maria apercebe-se de um enorme vulto sobre o telhado, se não soubesse que não existiam, teria achado ser um dragão. Depois de, incrédula, esfregar os olhos, viu o vulto levantar vôo com um par de asas semelhantes às dos morcegos, mas que achou serem demasiado pequenas para permitirem um animal daquele porte voar. Ainda com a perplexidade espelhada na cara, desta vez conseguiu coragem para perguntar a Joaquim se tinha visto alguma coisa. Este, com um ar intrigado, respondeu que não.

Assim que entraram em casa, Maria deixou-se instintivamente cair sobre o sofá. Pensou no ilusionista e no que este lhe tinha dito e achou que estava a ser vítima de sugestão. O ambiente do espectáculo e o que o velho artista lhe tinha dito, associados à sua susceptibilidade e alguma fadiga estavam a fazer a sua mente pregar-lhe partidas. Era isso, de certeza!

Percebendo a sua apatia, Joaquim voltou a perguntar o que se passava, se se sentia bem. Maria desculpou-se com o cansaço, disse que depois de um banho relaxante e de uma noite bem dormida estaria recuperada. Despediu-se e subiu a escada de madeira que dava acesso ao primeiro andar e começou a preparar o seu banho.

Estava tranquilamente deitada na banheira quando a sua visão periférica detectou movimento. Quando olhou nessa direcção teve apenas tempo para ver uma cauda de aspecto réptil desaparecer por debaixo do armário das toalhas. Involuntáriamente soltou um grito que alertou Joaquim. Num ápice, Joaquim irrompe pela casa-de-banho. Está ali um bicho enorme, disse Maria quase em estado de choque, atrás do armário. Joaquim olhou-a incrédulo, mas vendo a sua expressão, sem proferir qualquer palavra, dirigiu-se ao armário. Assim que o afastou, Maria teve que usar toda a sua força para conseguir manter a compostura. Estava uma porta atrás do armário! Uma pequena porta! Pela ausência de reação, facilmente se apercebeu que Joaquim não a via e não hesitou na decisão de não dizer nada. Não vejo bicho nenhum, disse ele desinteressadamente, deves tê-lo imaginado. Maria já não sabia o que dizer e acabou por responder afirmativamente para fechar o assunto.

Deitou-se e tentou descontrair, tarefa que foi dificultada pelas pequenas criaturas brilhantes que esvoaçavam pelo quarto e completamente impossibilitada pela visão de uma enorme aranha a subir pela parede. Puxou os cobertores para que lhe cobrissem completamente a cabeça e voltou a pensar no velho ilusionista e no que este lhe tinha dito. Achou que as visões teriam que estar relacionadas com ele, talvez a tivesse hipnotizado. Lembrou-se então que ele lhe tinha dito para não se preocupar pois não corria qualquer risco. Esta memória conseguiu tranquilizá-la um pouco, mas só conseguiu dormir quando Joaquim foi para a cama.

Magia 2/4

Assim que abriu os olhos, sem qualquer controle da sua parte, lembrou-se da pequena porta por detrás do armário da casa-de-banho. O silêncio dizia-lhe que Joaquim tinha já saído. Algo hesitante, pé ante pé, dirigiu-se para a casa de banho e parou a olhar desconfiadamente para o armário enquanto mordiscava nervosamente a unha do dedo médio da mão direita. Cautelosamente aproximou-se e tentou espreitar por trás do armário mas não conseguia ver nada. Encheu-se de coragem e afastou finalmente o armário da parede e o seu coração disparou ao ver a porta. Simples, de madeira visivelmente envelhecida, apenas com um orifício a servir de puxador e tão pequena que mesmo de gatas teria alguma dificuldade em passar. Tentou acalmar-se recordando o velho ilusionista. Pensou que se estivesse mesmo sob alguma forma de hipnose, a porta seria apenas uma alucinação, que se a tentasse abrir deparar-se-ia com uma parede. Aproximou-se devagar e depois de, sem sucesso, ter tentado vislumbrar algo através do orifício, aproximou o dedo, confiante que constataria que tudo não passava de uma ilusão e que o dedo embateria na parede. Quando o dedo atravessou o buraco, um formigueiro subiu-lhe pela coluna vertebral e com um movimento brusco retirou a mão. Começava a duvidar dos seus sentidos, sabia perfeitamente que nunca tinha ali existido nada e no entanto lá estava a porta. Ponderou alguns minutos depois do que, resoluta, empurrou a porta com força e deu um passo atrás. A luz do outro lado era muito ténue e não permitia distinguir muito, mas aparentava ser uma gruta. Não correrá qualquer risco, não correrá qualquer risco, repetiu mentalmente as palavras do prestidigitador enquanto se espremia através da pequena porta.

O medo começou a ceder à beleza do local. Estava numa enorme galeria do que parecia ser uma gruta, o tecto era altíssimo, no entanto, as formações rochosas não se assemelhavam a nada que tivesse já visto em qualquer outro sítio. As estalagtites e estalagmites tinham formas retorcidas e cresciam em todas as direcções, as poças e pequenos lagos no chão formavam padrões intrincados e a luz ambiente, da qual não conseguia perceber a origem, apresentava suaves variações de côr. É impossível este sítio existir, disse alto e a sua voz ecoou pelo espaço reverberando estranhamente nas paredes. Estava tão maravilhada com o local que já não se preocupava minimamente se era real ou não.

Curiosa e decidida a explorar as redondezas, atravessou a galeria e seguiu por um túnel que a conduziu a outra galeria mais pequena onde um lago de água borbulhante libertava um exótico e agradável aroma. Ouvia ao longe sons de animais, alguns que julgou serem de morcegos, mas havia outros que não conseguia identificar com nenhum animal que conhecesse. Seguiu por túneis e galerias, tentando memorizar o caminho para o regresso e acabou por chegar a um espaço onde, como se estivesse fundido com a própria rocha, vislumbrou um muro que não podia ser natural. Uma parede de blocos de pedra geométricos e ordenados que pareciam nascer da base rochosa. Aproximou-se cautelosamente mas gelou ao ouvir ruído por trás de si. Virou-se e quase desmaiou ao deparar-se com uma gigantesca criatura, algo como um ogre saído de uma qualquer história fantástica, que bramia um pau aproximadamente do tamanho de Maria. Sem sítio por onde escapar, ao ver a criatura elevar o pau acima da cabeça, Maria pensou que os seus dias terminariam ali, mas, como que caído do céu, ou neste caso do tecto, eis que com um sonoro relinchar aparece um imponente cavaleiro, de cavalo branco e armadura resplandecente, empunhando uma enorme espada. Vai-te, vil criatura, não te atrevas a importunar essa doce donzela, disse o cavaleiro. Maria, apesar do pânico, conseguiu ainda ruborizar nas maçãs do rosto e esboçar meio sorriso. A criatura hesitou, mas rapidamente decidiu que a parca refeição que Maria proporcionaria não valia o risco e acabou por se retirar, desajeitado, a correr. O cavaleiro desmontou e, colocando um joelho no chão, a espada à sua frente com a ponta também no chão e as mãos sobre a extremidade do punho, apresentou-se com reverência. Obrigado por me ter dado a honra de a defender, melíflua donzela, disse. Maria corou integralmente e lá conseguiu dizer, sem gaguejar muito, que ela é que devia estar agradecida. Permita-me que a transporte para a segurança, continuou o cavaleiro, esta masmorra não é um lugar adequado para uma dama, principalmente uma tão bela e formosa. Se é que tal era possível, Maria ficou ainda mais vermelha, mas instintivamente entrou na onda. Fico-lhe eternamente grata, gentil senhor, foi verdadeiramente uma sorte ter aparecido tão nobre e bravo guerreiro para me salvar das garras daquele monstro infame. Não é mais que o meu dever, bela senhora, com a sua permissão, disse ainda o cavaleiro enquanto, sem qualquer esforço, pegava em Maria pela cintura e a colocava sobre o dorso do cavalo. Montou depois por detrás dela e com um quase imperceptível toque dos seus calcanhares, o cavalo seguiu a passo até à pequena porta.

Está entregue, bela senhora, atravesse e estará em segurança, disse o cavaleiro quebrando o silêncio. Desmontou, e com extrema suavidade retirou Maria do cavalo e colocou-a no chão. Probo senhor, como poderei agradecer tal obséquio, perguntou Maria que, sem medo e sem questionar a realidade dos acontecimentos, conseguia já estar a divertir-se com a situação. O cumprimento do meu dever de proteger os inocentes é agradecimento mais que suficiente, doce donzela. Com a sua licença, continuou enquanto voltava a montar o seu imponente corcel, retiro-me em busca dos fracos e dos oprimidos. Mais uma vez obrigada, espero que os nossos caminhos se voltem a cruzar, disse ainda Maria enquanto se acercava da pequena porta. Nada é impossível, respondeu o cavaleiro ao mesmo tempo que dava meia volta. Depois desapareceu para dentro da gruta e Maria espremeu-se de volta através da pequena porta.

Magia 3/4

Estás particularmente bem-disposta hoje, disse Joaquim ao jantar, enquanto se servia. É verdade, retorquiu Maria, não sei bem porquê, mas sim, estou. Tenho pena, mas hoje não vou poder usufruir da tua boa-disposição, combinei ir ver o jogo com o pessoal. Tudo bem, não faz mal, eu não me importo de estar bem-disposta sozinha, disse Maria com um sorriso tão genuíno que fez Joaquim franzir uma sobrancelha. Passa-se alguma coisa, perguntou. Não, nadinha, respondeu Maria tentando controlar o contentamento por ter a possibilidade de fazer outra incursão pela pequena porta.

Poucos minutos depois de Joaquim sair, já Maria olhava ansiosa para a pequena porta. Não demorou mais que alguns instantes a, decidida, irromper porta adentro para descobrir que, ao contrário do que esperava, não estava na gruta onde tinha saído antes mas no que parecia ser um bosque. Olhou para trás e viu que a porta estava no tronco de uma grande árvore.

Também vieste para o baile, perguntou uma vozinha. Maria, intrigada, olhou à volta sem ver ninguém. Aqui em baixo. Maria olhou para baixo e abriu um enorme sorriso ao reparar num pequeno ouriço-cacheiro. Olá, eu sou a Maria, disse divertida. Que baile é esse, perguntou. Peço desculpa pela indelicadeza de não me ter apresentado, Osvaldo Riço, ao dispor. Muito prazer, respondeu Maria sem conseguir tirar da cara o sorriso incrédulo. Não vieste para o baile, perguntou o ouriço Osvaldo. Não, por acaso vinha só para passear, mas que baile é esse, não fui convidada, respondeu Maria tentando dar alguma tristeza às palavras. Que baile é esse, repetiu o ouriço atónito, que baile haveria de ser, o baile no bosque, naturalmente, e ninguém precisa de convite para o baile no bosque. Que bom, então adorava ir também. Calha bem porque já estamos atrasados, mas, se me deres boleia, com umas pernas desse tamanho de certeza que chegamos lá num instante. Vamos lá então, disse Maria enquanto, com muito cuidado, pegava no ouriço Osvaldo e seguia caminho. Pouco tempo depois, seguindo as indicações do ouriço, a música que começaram a ouvir disse-lhes que estavam perto.

Ao chegar à clareira onde estava a decorrer o baile os olhos de Maria arregalaram-se de um misto de estupefacção e euforia. Dezenas de animais dançavam alegremente ao maravilhoso som de uma banda de elfos e sátiros. Ficou literalmente paralisada de queixo caído a olhar para a fenomenal cena, que podia muito bem ter nascido da imaginação de La Fontaine.

Caros amigos, disse Osvaldo ao acercar-se do magote, temos hoje o raro privilégio da companhia de um humano adulto, peço-vos que a façam sentir acolhida, já deu para reparar que ela já não está habituada a estes bailes. Esta é a Maria, concluiu. Olá Maria, cumprimentaram em coro os animais. Olá a todos, retribuiu Maria, obrigado por me receberem neste vosso divertido baile. Vem, dança connosco, disse um urso estendendo-lhe a pata. Maria esticou a mão e num ápice deu por si numa roda, dançando alegremente com a miríade de animais que se divertia no baile. Muitas voltas depois, cansada, Maria saiu da roda e sentou-se encostada a uma árvore.

Então, estás a gostar? Maria virou a cabeça na direcção da voz. Uma enorme iguana descansava ao seu lado. Estou simplesmente a adorar, respondeu excitada Maria. Maria, não é? Sim. Chamo-me Isabel, e apesar de não ser muito de danças, não perco um baile no bosque, gosto da oportunidade de conversar com outros animais. Muito prazer, Isabel, deixa-me adivinhar, o teu apelido é Guana, certo? A iguana Isabel olhou-a espantada. Como é que sabes, perguntou desconfiada. Foi um palpite sortudo, respondeu alegremente Maria. Eu também estou a gostar muito de poder conhecer animais tão interessantes, continuou, desviando o assunto, está a ser um verdadeiro deleite. Sabes, é pena, mas não costumamos ter muitas visitas de humanos adultos, só as crianças é que normalmente cá vêm. Pois, é pena, mas tenho a certeza que muitos adorariam vir, só que não devem saber o caminho. Pois, eu já tinha ouvido dizer que os humanos têm uma péssima memória.

Apercebendo-se que tinha já perdido a noção do tempo que tinha passado, pediu licença à iguana Isabel e levantou-se. Muito obrigado caros amigos, disse dirigindo-se aos outros, foi verdadeiramente fantástico mas tenho que ir. Adeus Maria, até à próxima, responderam os animais em coro. Prometo que vou voltar, disse ainda Maria enquanto iniciava a curta caminhada de volta à grande árvore, onde atravessou a pequena porta de regresso.

Assim que acabou de voltar a encostar o armário à parede ouviu Joaquim a entrar. Mesmo a tempo, disse alegre para si própria. Maria, chamou Joaquim ao entrar em casa. Aqui, respondeu ela descendo as escadas, ainda com resquícios de estupefacção no rosto. O que se passa, porquê essa cara, perguntou ele. Maria teve uma enorme vontade de partilhar com Joaquim as suas experiências recentes, mas sabia que, não vendo nada do que ela via, nunca iria acreditar, mais, iria certamente pensar que não estaria boa da cabeça. Não se passa nada, está tudo bem. Joaquim não acreditou, mas não insistiu.

Magia 4/4

Quando os primeiros raios de luz solar investiram quarto adentro, Maria recuperou rapidamente a consciência e com ela veio a expectativa sobre o que a esperaria naquele dia, do outro lado da pequena porta. Olhou para o lado, Joaquim ainda dormia profundamente. Deve ser ainda muito cedo, pensou, posso ir dar uma espreitadela antes de ele acordar. Levantou-se cuidadosamente para não acordar Joaquim e foi directa à casa de banho.

A desilusão foi avassaladora quando afasta o armário e a porta não estava lá. Ficou ainda alguns minutos estática a olhar para a parede nua sem saber muito bem o que fazer. Aquela era a sua porta, a sua escapatória dos problemas do mundo real, precisava dela, porque é que já não estava lá, ponderou. Não se conformava com a situação, queria poder continuar a visitar aquele mundo paralelo, já lhe custava até imaginar a sua vida sem ele, seria monótona e difícil. Só havia uma coisa que poderia fazer, procurar o velho prestidigitador.

Descobriu onde e quando era o próximo espectáculo e compareceu. Esperou ansiosa, na última fila, pelo fim da apresentação em que o prestidigitador, como sempre, conseguia facilmente a simpatia do público através do seu carisma natural. Esta simpatia era amplificada pela incontornável evidência de que, quando estava no palco, cada gesto seu estava carregado de amor pelo que fazia, pela sua arte.

Quando, depois do inevitável aplauso de pé, os espectadores começaram a sair, Maria dirigiu-se ao artista. Lembra-se de mim, perguntou hesitante ao velho ilusionista. Claro que sim, minha cara, apesar da minha idade, nunca me esqueci de ninguém que tenha participado num dos meus números, respondeu, o que posso fazer por si? Num tom de quase súplica, Maria contou ao velho artista tudo o que tinha acontecido desde a última vez que o tinha visto, que ouviu tudo sem demonstrar qualquer surpresa. Por fim contou-lhe do desaparecimento da pequena porta e implorou-lhe que a fizesse voltar a aparecer. Com um sorriso paternalista, o velho ilusionista demorou alguns momentos a responder. Minha querida, a porta continua a existir, disse. E continua no mesmo sítio de sempre, aqui, prosseguiu o velho prestidigitador dando duas suaves pancadas no centro da testa de Maria com o dedo indicador, tens apenas que aprender a abri-la sem a minha ajuda.

terça-feira, 11 de novembro de 2008

Música

- Eh, olha lá ali o cromo.

- Escuta. Estás a ouvir? É maravilhoso.

- Não ouço nada, estava era a ver ali aquele marado descalço a tocar piano invisível.

- Fenomenal! Nunca tinha ouvido música tão sublime.

- Estás a gozar? Que música?

- O piano. Não ouves?

- Não, claro que não. E tu também não ouves nada e estás só a gozar com a minha cara.

- O teu problema é estares a tentar usar os ouvidos quando a música se ouve com o coração.